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Não quero falar das armas | Então,escrevo
Não quero falar das armas
Não preciso falar
Nem dos tiros,
Nem das balas,
Do barulho, dos furos
Nem do desespero, dos gritos,
Da perda, dos muros
Dos corpos expostos,
Da vida que não era perdida
Da bala que não era perdida
Era bala mirada
Àquela alma,
Àquele corpo,
Àquela cor
Não queria falar das armas
Muito menos de chacina
Tampouco de quem extermina
E apaga aquela alma, aquele corpo,
Aquela cor
Apaga com aquela mirada
Dispara
Apaga com oitenta,
Apaga com uma só.
03/12/2019
Então, escrevo
— Apaga com oitenta,
Apaga com uma só.
Desperto-me com esse fragmento dias depois do assassinato de João Pedro. Vasculho gavetas em busca do pedaço restante. Encontro-o. Leio-o. Vou até a cozinha passar um café, remoendo as palavras escritas por mim naquela tarde de dezembro - dias depois da chacina de Paraisópolis. Os oitenta tiros avançados ao carro de Evaldo cruzam-se em direção à Paraisópolis. A chacina não começa, nem termina ali. Eu não tenho coragem de contar tudo isso em voz alta. Penso nas vidas tiradas pelas armas e as fardas. Penso em João Pedro e nas vidas das crianças roubadas pelas fardas. Então, escrevo - vomitando nas gavetas toda a crueza de um mundo que eu não queria que existisse.
Às vidas tiradas de Jenifer, Kauã, Kauan, Kauê, Ágatha, Kethellen, Evaldo, Luciano, Denys, Gustavo, Dennys, Marcos, Luara, Gabriel, Eduardo, Bruno, Matheus, João Pedro e tantos outros.
20/05/2020
Ana Sabadin

Ana Sabadin
Socióloga, doutoranda na UFSCar. O emaranhado de palavras que trago aqui alivia o cansaço das minhas inquietações com o mundo.